A
noite havia caído na Campina Ardente. A opacidade da fumaça cobria a lua e as
estrelas, mergulhava a terra numa escuridão profunda que só foi quebrada pelo
brilho sombrio das chamas esporádicas de turfa e das milhares de tochas que
cada exército acendeu. Da posição de Eragon perto do pelotão dianteiro dos
Varden, o Império parecia um denso ninho de luzes laranjas incertas tão grande
quanto qualquer cidade.
Enquanto
Eragon afivelava o último pedaço da armadura de Saphira a sua cauda, ele fechou
os olhos para manter um melhor contato com os mágicos da Du Vrangr Gata. Tinha
de aprender a localizá-los em um instante, sua vida poderia depender de uma
comunicação rápida com eles. Por sua vez, os mágicos teriam de aprender a
reconhecer o contato de sua mente, para não o bloquearem quando ele precisasse
de ajuda. Eragon sorriu e disse:
—
Olá, Orik. — Ele abriu os olhos para ver o anão escalando uma pedra baixa onde
ele e Saphira estavam posicionados. Orik, que tinha o corpo completamente
encoberto por uma armadura, carregava o seu arco de chifre de Urgal na mão
esquerda.
Agachado
ao lado de Eragon, Orik enxugou a testa e balançou a cabeça.
—
Como você sabia que era eu? Eu estava me protegendo mentalmente.
Cada consciência tem suas
especificidades, explicou Saphira. Assim como não há duas vozes que soem iguais.
—
Ah.
—
O que o traz aqui? — perguntou Eragon.
Orik
balançou os ombros.
—
Ocorreu-me que você poderia apreciar um pouco de companhia nesta noite soturna.
Especialmente desde que Arya passou a ocupar uma posição diferente e você não
tem Murtagh ao seu lado nesta batalha.
E eu gostaria de ter,
pensou Eragon. Murtagh havia sido o único humano cuja perícia com a espada se
equiparava a de Eragon, pelo menos antes do Agaetí Blödhren. Lutar com ele fora
um dos poucos prazeres do Cavaleiro durante o tempo em que conviveram. Eu adoraria poder enfrentar você novamente,
meu amigo.
Lembrar
de como Murtagh havia sido morto — puxado para o subterrâneo por Urgals em
Farthen Dûr — forçou Eragon a enfrentar uma verdade inabalável: não importa ser
um grande guerreiro, geralmente o acaso é que decide quem vive e quem morre na
guerra.
Orik
deve ter percebido o ânimo do jovem, pois bateu no ombro de Eragon e disse:
—
Você vai ficar bem. Imagine só como os soldados lá embaixo estão se sentindo,
sabendo que terão de enfrentar você em breve!
A
gratidão fez Eragon sorrir novamente.
—
Fico feliz que você tenha vindo.
A
ponta do nariz de Orik avermelhou-se e ele olhou para baixo, rolando seu arco
entre as mãos ásperas.
—
Ah, bem — murmurou ele. — Hrothgar não iria gostar muito se eu deixasse algo
acontecer a você. Além do mais, somos irmãos de criação, não?
Através
de Eragon, Saphira perguntou: E quanto
aos outros anões? Eles não estão sob o seu comando?
Um
vislumbre brotou nos olhos de Orik.
—
Ora, sim, é claro que estão. E irão juntar-se a nós o quanto antes. Vendo
Eragon como membro do dûrgrimst Ingeitum, é mais do que certo que devemos
enfrentar o Império juntos. Dessa maneira, vocês dois estarão menos vulneráveis
e poderão se concentrar em descobrir onde estão os mágicos de Galbatorix, em
vez de ficarem se defendendo de ataques constantes.
—
Boa ideia. Obrigado.
Orik
grunhiu um agradecimento. Então Eragon perguntou:
—
O que você acha de Nasuada e dos Urgals?
—
Ela fez a escolha certa.
—
Você concorda com ela!
—
Concordo. Não gosto disso mais do que você, mas concordo.
O
silencio os envolveu. Eragon se sentou, encostou-se em Saphira e passou a
contemplar o Império, tentava evitar que sua crescente ansiedade o dominasse.
Os minutos se arrastavam. Para ele, a espera interminável antes de uma batalha
era tão estressante quanto a própria luta. Ele lubrificou a sela de Saphira,
tirou poeira da sua couraça de malha e então voltou a se familiarizar com as
mentes da Du Vrangr Gata, fazia qualquer coisa para passar o tempo.
Mais
de uma hora depois, ele parou assim que sentiu dois seres se aproximando e
vindo da terra de ninguém. Angela? Solembum?
Confuso e sobressaltado, ele acordou Orik — que havia apagado — e lhe contou o
que descobrira.
O
anão franziu a testa e tirou seu machado de guerra do cinto.
—
Só encontrei a herbolária poucas vezes, mas não parece o tipo de pessoa que
iria nos trair. Ela tem sido bem-vinda entre os Varden há décadas.
—
Ainda assim nós devíamos descobrir o que ela estava fazendo — disse Eragon.
Juntos
seguiram pelo meio do acampamento para interceptar a dupla enquanto se
aproximavam das fortificações. Angela logo começou a se apressar sob a luz,
vinha com Solembum em seus calcanhares. A bruxa estava disfarçada com um manto
que cobria o seu corpo inteiro e permitia que ela fosse confundida com o
cenário sarapintado. Demonstrando uma soma surpreendente de vivacidade, força e
flexibilidade, escalou as diversas barreiras que os anões haviam montado,
balançou-se de estaca em estaca, pulou por cima de trincheiras, e finalmente
desceu atabalhoadamente a face íngreme da última plataforma para parar,
ofegante, perto de Saphira.
Jogando
o capuz de seu manto para trás, Angela lhes dirigiu um sorriso cintilante:
—
Um comitê de recepção! Como vocês são atenciosos. — Enquanto ela falava, o
menino-gato tremia todo, com a pele enrugada. De repente, seu contorno começou
a ficar borrado como se estivesse sendo visto através da água nebulosa,
recompondo-se mais uma vez na forma da figura despida de um garoto coberto de pelos.
Angela enfiou a mão numa bolsa de couro que havia em seu cinto e deu uma túnica
de criança e um calção para Solembum, junto com a pequena adaga negra com a
qual ele lutou.
—
O que vocês estavam fazendo por lá? — perguntou Orik, analisando-os com um
olhar suspeitoso.
—
Oh, uma coisa e outra.
—
Acho melhor você nos contar — disse Eragon.
O
rosto dela endureceu.
—
É mesmo? Vocês não confiam em mim e em Solembum? — O menino-gato mostrava seus
dentes afiados.
—
Não de verdade — admitiu Eragon, mas com um sorrisinho.
—
Isso é bom — disse Angela. Ela passou a mão de leve no rosto dele. — Você vai
viver mais tempo. Se quer saber, então, eu estava fazendo o melhor que eu podia
para derrotar o Império, só que os meus métodos não envolvem gritar e ficar
correndo por aí com uma espada na mão.
—
E quais são exatamente os seus métodos? — resmungou Orik.
Angela
fez uma pausa para enrolar o seu manto bem apertado, e em seguida o guardou em
sua bolsa.
—
Prefiro não dizer, quero que seja uma surpresa. Vocês não terão de esperar
muito tempo para descobrir. Irá começar daqui a algumas horas.
Orik
puxou sua barba.
—
O que irá começar? Se você não puder nos dar uma resposta franca e direta,
teremos que levá-la para Nasuada. Talvez ela consiga arrancar algum sentido do
que você está dizendo.
—
Não adianta vocês me arrastarem para onde Nasuada está — disse Angela. — Ela me
deu permissão para atravessar a fronteira.
—
Você é que está dizendo — desafiou Orik, ainda mais agressivo.
—
Sou eu que estou dizendo — anunciou Nasuada, vindo detrás como Eragon sabia que
ela faria. O jovem também sentiu que ela estava acompanhada de quatro Kull, um
dos quais era Garzhvog. Franzindo a testa, ele se virou para encará-los, sem
fazer nenhuma tentativa de esconder sua raiva com a presença dos Urgals.
—
Minha lady — murmurou Eragon.
Orik
não estava tão calmo: ele pulou para trás proferindo veementes imprecações e agarrando
seu machado de guerra. Ele rapidamente percebeu que eles não estavam sob ataque
e cumprimentou polidamente Nasuada. Mas sua mão não largava o cabo da sua arma
e seus olhos não desviaram dos grandes e toscos Urgals. Angela parecia não ter
esse tipo de dificuldade. Prestou a Nasuada as devidas referências e depois se
dirigiu aos Urgals em sua língua primitiva, e eles responderam com um prazer
evidente.
Nasuada
arrastou Eragon para o lado a fim de que ambos tivessem um momento de
privacidade.
—
Preciso que você coloque os seus ressentimentos de lado por um instante e
julgue o que estou prestes a lhe dizer com lógica e razão. Você pode fazer
isso? — Ele acenou positivamente, com o rosto tenso. — Bom. Estou fazendo tudo
que posso para garantir que não percamos amanhã. Não importa, no entanto, o
quão bem lutemos, o quão bem eu venha a liderar os Varden, ou até mesmo se
derrotarmos o Império se você — disse ela, batendo no peito de Eragon — for
morto. Entende?
Ele
acenou com a cabeça mais uma vez.
—
Não há nada que eu possa fazer para protegê-lo se Galbatorix se revelar, se ele
o fizer, você terá que enfrentá-lo sozinho. Du Vrangr Gata não representa mais
do que uma ameaça para ele do que eles representam para você, e não farei com
que eles sejam erradicados sem motivo.
—
Eu sempre soube que iria encarar Galbatorix sozinho com Saphira — disse Eragon.
Um
sorriso triste surgiu nos lábios de Nasuada. Ela parecia muito cansada sob as
luzes bruxuleantes das tochas.
—
Bem, não há motivo para inventar problemas quando eles não existem. É possível
que Galbatorix nem esteja aqui. — No entanto, Nasuada não parecia acreditar em
suas próprias palavras. — De qualquer maneira, posso ao menos impedir que vocês
morram com um golpe de espada nas entranhas. Já soube o que os anões pretendem
fazer e achei que poderia aperfeiçoar o conceito. Pedi a Garzhvog e três de
seus aríetes que sejam os seus guardas, contanto que eles concordassem, o que o
fizeram, em ter suas mentes vasculhadas por você em busca de algum indício de
traição.
Eragon
ficou rígido.
—
Você não espera que eu vá lutar junto com esses monstros. Além do mais, já aceitei a oferta dos anões para defender
a mim e a Saphira. Eles não receberiam bem a notícia de que os rejeitei em
favor dos Urgals.
—
Ambos podem defendê-lo — retrucou Nasuada. Ela examinou o rosto de Eragon
durante um bom tempo, procurando por aquilo que ele não poderia dizer. — Oh,
Eragon. Esperava que você pudesse enxergar além do seu ódio. O que mais você
faria se estivesse na minha posição? — Ela suspirou quando viu que ele
permaneceu em silêncio. — Se alguém tem motivo para guardar algum rancor contra
os Urgals, sou eu. Eles mataram o meu pai. No entanto, não posso deixar que
isso interfira na minha decisão do que é melhor para os Varden... Pelo menos peça
a opinião de Saphira antes de dizer sim ou não. Posso ordená-lo a aceitar a
proteção dos Urgals, mas preferia não ter de fazê-lo.
Você está sendo tolo,
observou Saphira sem se mover.
Tolo por não querer os Kull nas
minhas costas?
Não, tolo por recusar ajuda, não
importando de onde ela venha, em nossa situação presente. Pense. Você sabe o
que Oromis faria, e sabe o que ele diria. Você não confia em seu julgamento?
Ele não pode estar certo em relação
a tudo, disse Eragon.
Isso não é argumento... Pense, Eragon,
e diga-me se eu falo a verdade. Você sabe qual é o caminho correto. Ficaria
desapontada se você não se permitisse compreender isso.
A
indução de Saphira e Nasuada só deixara Eragon mais relutante em concordar.
Contudo, ele sabia que não tinha escolha.
—
Tudo bem, deixarei que me protejam, mas só se eu não achar nada suspeito em
suas mentes. Vocês me prometem que, depois dessa batalha, não vão me fazer
trabalhar com um Urgal novamente?
Nasuada
balançou a cabeça.
—
Não posso prometer-lhe, não se isso puder vir a afetar os Varden. — Ela fez uma
pausa e disse: — Ah, mais uma coisa, Eragon.
—
Sim, minha lady?
—
Caso eu venha a morrer, escolhi você como meu sucessor. Se isso acontecer,
sugiro que você se fie na opinião de Jörmundur, pois ele tem mais experiência
do que os outros membros do Conselho de Anciãos. Espero que você coloque o
bem-estar daqueles que estão abaixo de você acima de tudo o mais. Estou sendo
clara, Eragon?
Seu
anúncio o pegou de surpresa. Nada para ela significava mais do que os Varden. Oferecer
sua sucessão para ele era o maior gesto de confiança que ela poderia fazer. Sua
firmeza o tornou humilde e o tocou, ele fez uma reverência.
—
Eu teria de me esforçar enormemente para ser um líder tão bom quanto você e
Ajihad. Você me honra, Nasuada.
—
Sim, eu o honro. — Dando-lhe as costas, ela se juntou novamente aos outros.
Ainda
desarmado pela revelação de Nasuada, e descobrindo que sua raiva havia
diminuído por causa disso, Eragon voltou lentamente até onde Saphira estava.
Ele estudou Garzhvog e os outros Urgals, tentando julgar sua disposição, mas
seus traços eram tão diferentes daqueles com os quais estava acostumado que ele
não podia discernir nada além da mais tranca das emoções. Nem podia encontrar
qualquer empatia dentro de si pelos Urgals. Para o jovem, eles não passavam de
feras bestiais que iriam matá-lo logo que fosse possível e eram incapazes de
manifestar amor, doçura ou até mesmo uma inteligência verdadeira. Em suma, eles
eram seres inferiores.
Bem
no fundo de sua mente, Saphira sussurrou: Tenho
certeza de que Galbatorix partilha da mesma opinião.
E por um bom motivo,
resmungou ele, na intenção de chocá-la. Suprimindo sua revolta, Eragon disse em
voz alta:
—
Nar Garzhvog, me disseram que vocês quatro concordaram em me deixar invadir suas
mentes.
—
É verdade, Espada de Fogo. Lady Caçadora Noturna nos alertou sobre as
exigências. Estamos honrados por ter a chance de lutar ao lado de um guerreiro
tão poderoso e que já fez tanto por nós.
—
O que você quer dizer com isso? Já matei vários da sua espécie. —
Espontaneamente, trechos de um dos pergaminhos de Oromis veio à mente de
Eragon. Ele se lembrou de ter lido que Urgals, tanto machos quanto fêmeas,
determinavam sua posição na sociedade através do combate, e que fora essa
prática, acima de tudo, que levou a tantos conflitos entre os Urgals e as
outras raças. Isso significava que, como ele percebeu, se admiravam seus feitos
nos campos de batalha, então podiam ter lhe conferido o mesmo status de um dos
seus comandantes.
—
Ao matar Durza, você nos livrou do seu controle. Estamos em dívida com você,
Espada de Fogo. Nenhum dos nossos aríetes irá desafiá-lo e, se um dia resolver
visitar nosso lar, você e o dragão, Língua em Chamas, serão bem-vindos como
nenhum outro estrangeiro.
De
todas as respostas que Eragon esperava, gratidão era a última e era a que ele
menos sentia-se preparado para lidar. Incapaz de pensar em outra coisa, ele
disse:
—
Não me esquecerei. — Ele voltou seu olhar para os outros Urgals e depois
retornou para Garzhvog e seus olhos amarelos. — Você está pronto?
—
Sim, Cavaleiro.
Enquanto
Eragon penetrava na consciência de Garzhvog, lembrou-se como os Gêmeos
invadiram a sua mente quando ele entrou em Farthen dûr. Tal observação foi
varrida assim que ele mergulhou na identidade do Urgal. A verdadeira natureza
da sua busca — procurar uma intenção malévola escondida talvez em algum lugar
do passado de Garzhvog — significava que Eragon tinha de examinar anos de
lembranças. Ao contrário dos Gêmeos, o Cavaleiro evitou provocar uma dor deliberada,
mas não foi totalmente gentil. Ele podia sentir Garzhvog se encolhendo com
pontadas ocasionais de desconforto.
Assim
como anões e elfos, a mente de um Urgal possuía elementos diferentes de uma
mente humana. Sua estrutura enfatizava a rigidez e a hierarquia — resultado das
tribos nas quais os Urgals se organizavam —, mas parecia dura e crua, brutal e
astuciosa: a mente de um animal selvagem.
Embora
não fizesse nenhum esforço para aprender mais sobre Garzhvog como indivíduo,
Eragon não pôde deixar de absorver pedaços da vida do Urgal. Garzhvog não
resistiu. Na verdade, parecia ansioso para compartilhar suas experiências, para
convencer Eragon de que os Urgals não eram inimigos de berço. Não podemos permitir que surja outro
Cavaleiro queira nos destruir, disse Garzhvog. Veja bem, ó Espada de Fogo, e veja se somos realmente os monstros que
você acredita que somos...
Foram
tantas imagens e sensações que reverberaram entre os dois, Eragon quase se
perdeu: a infância de Garzhvog com os outros membros da sua raça, num vilarejo
rústico construído dentro do coração da Espinha, sua mãe escovava o seu cabelo
com os chifres de um cervo e cantando uma suave canção, aprendia a caçar veados
e outras presas com as próprias mãos, crescia cada vez mais até ficar aparente que
o antigo sangue ainda fluía em suas veias e que ele ficaria com mais de dois
metros e meio de altura, o que o tornaria um Kull, as dezenas de desafios que
fez, aceitou e venceu, aventurou-se fora do vilarejo para ganhar renome, a fim
de que pudesse acasalar e aos poucos aprender a odiar, desconfiar e temer —
sim, temer — o mundo que havia condenado a sua raça, lutava em Farthen Dûr,
descobria que eles haviam sido manipulados por Durza, e percebeu, enfim, que
sua única esperança de uma vida melhor era colocar de lado as velhas
diferenças, ser amigo dos Varden e ver Galbatorix derrotado. Não havia
evidência em lugar nenhum de que Garzhvog havia mentido.
Eragon
não podia entender o que acabava de ver. Saiu da mente de Garzhvog, depois
mergulhou dentro de cada um dos três Urgals restantes. Suas memórias
confirmaram os fatos apresentados por Garzhvog. Eles não fizeram nenhuma
tentativa de esconder que tinham assassinado humanos, mas isso havia sido feito
sob o comando do Espectro quando o feiticeiro os controlava, ou quando
enfrentavam humanos por comida ou terra. Fizemos
o que tinha de ser feito para cuidar de nossas famílias, disseram eles.
Quando
terminou, Eragon ficou em pé adiante de Garzhovg e sabia que a linhagem do
Urgal era tão régia quanto a de qualquer príncipe. Ele sabia que, embora
inculto, Garzhvog era um comandante brilhante e se tratava de um pensador e
filósofo tão bom quanto Oromis. Ele com
certeza é mais brilhante do que eu, admitiu Eragon para Saphira.
Pigarreando em sinal de respeito, ele disse em voz alta, “Nar Garzhvog”, e pela
primeira vez compreendeu a origem grandiosa do título nar.
—
Estou orgulhoso por ter você ao meu lado. Pode falar para as Herndall que,
enquanto os Urgals mantiverem a sua palavra e não se voltarem contra os Varden,
eu não irei opô-los. — Eragon duvidou que um dia fosse gostar de um Urgal, mas
a convicção ferrenha de seu preconceito, há apenas uns poucos minutos, pareciam
agora fruto de sua ignorância, e ele não podia retê-la em boa consciência.
Saphira
bateu de leve no braço do parceiro com sua língua farpada, fazendo a malha
retinir. É necessário coragem para
admitir que você estava errado.
Só se você está com medo de parecer
tolo, eu teria parecido muito mais tolo se persistisse numa crença errônea.
Ora, pequenino, você acabou de
dizer algo inteligente. Apesar da sua provocação, ele
podia sentir o grande orgulho que ela manifestava pelo que ele havia feito.
—
Mais uma vez estamos em dívida para com você, Espada de Fogo — disse Garzhvog.
Ele e os outros Urgals bateram com os punhos nas testas protuberantes.
Eragon
podia imaginar que Nasuada queria saber os detalhes do que havia acabado de
acontecer, mas isso ela guardou para si.
—
Bom. Agora que tudo está resolvido, tenho de partir. Eragon, você receberá meu
sinal por intermédio de Trianna quando chegar a hora. — Em seguida, ela se
afastou no meio da escuridão.
Enquanto
Eragon se acomodava ao lado de Saphira, Orik se aproximou silenciosamente.
—
É uma sorte que nós anões estejamos por aqui, hein? Veremos os Kull como falcões,
veremos sim. Não deixaremos que eles o peguem quando estiver de costas. No
momento em que atacarem, cortaremos suas pernas na mesma hora.
—
Achei que você concordasse com o fato de Nasuada ter aceitado a oferta dos Urgals.
—
Isso não quer dizer que eu confio neles ou que quero estar ao seu lado, não é?
— Eragon sorriu e não se dignou a discutir, seria impossível convencer Orik de
que os Urgals não eram assassinos vorazes, quando ele mesmo havia se recusado a
considerar tal possibilidade, até partilhar das lembranças de um deles.
A
noite caía pesada em torno deles, enquanto aguardavam o amanhecer. Orik tirou
uma pedra de amolar do seu bolso e começou a afiar o fio de seu machado. Assim
que chegaram, os outros seis anões fizeram o mesmo, e o raspar do metal na
pedra encheu o ar de um ranger em uníssono. Os Kull se sentavam de costas um
para o outro, entoaram canções de morte em voz baixa. Eragon passou o tempo
erguendo defesas em torno de si mesmo, Saphira, Nasuada, Orik e até de Arya.
Ele sabia que era perigoso proteger tanta gente, mas não conseguiria aguentar
caso eles fossem feridos. Quando terminou, ele transferiu o poder que restou para
os diamantes incrustados no cinto de Beloth, o Sábio.
Eragon
ficou observando Angela com interesse, ao vê-la vestida com armadura verde e
negra, e depois quando pegou uma caixa de madeira entalhada para montar sua
espada, a partir de dois cabos diferentes que se encaixavam no meio e duas
lâminas de aço enrascadas às extremidades da estaca resultante. Ela ficou
girando a arma completa algumas vezes em volta da cabeça, antes de se
certificar de que aguentaria o choque da batalha.
Os
anões a olharam com um ar de desaprovação e Eragon ouviu um deles murmurar:
—
... blasfêmia que alguém além do Dûrgrimst Quan possa brandir a hûthvír.
Depois
disso, o único som que se pôde ouvir foi a música dissonante dos anões amolando
suas lâminas.
Estava
quase amanhecendo quando os gritos começaram. Eragon e Saphira os notaram antes
por causa de seus sentidos ampliados, mas os gritos agonizantes logo estavam
altos o suficiente para que todos pudessem ouvi-los. Assim que se levantou,
Orik olhou em direção ao Império, onde acacofonia se originou.
—
Que espécie de criaturas eles estão torturando para arrancar uivos tão
medonhos? Esse som faz o tutano dos meus ossos congelar, e como.
—
Eu lhes disse que a espera não seria longa — disse Angela. Sua antiga alegria a
havia abandonado, ela estava pálida, tensa e ostentava um rosto envelhecido,
como se estivesse doente.
Do
seu posto ao lado de Saphira, Eragon perguntou à herbolária:
—
Você fez isso?
—
Sim. Envenenei a carne ensopada, o pão, a bebida... tudo em que pude botar as
mãos. Alguns morrerão agora, outros morrerão mais tarde quando as várias
toxinas forem envenenando suas vítimas. Fiz os oficiais deles tomarem beladona
e outros venenos, para que eles tenham alucinações durante a batalha. — Ela
tentou sorrir, mas sem muito sucesso. — Não é uma maneira muito honrada de
lutar, suponho, mas prefiro fazer isso a morrer.
—
Só um covarde ou um ladrão usa veneno! — exclamou Orik. — Que glória há em
derrotar um adversário doente? — Os gritos foram se intensificando enquanto ele
falava.
Angela
deu uma gargalhada desprezível.
—
Glória? Se você quiser glória, há milhares de outras tropas que não envenenei.
Estou certo de que você terá a sua cota de glória até o fim do dia.
—
É por isso que você precisava do equipamento na tenda de Orrin? — perguntou
Eragon.
Ele
achou seu feito repugnante, mas não ousou definir se fora bom ou mau. Era
necessário. Angela havia envenenado os soldados pelo mesmo motivo que Nasuada
havia aceitado a oferta de amizade dos Urgals... porque poderia ser sua única
chance de sobrevivência.
—
Isso mesmo.
Os
lamentos dos soldados aumentaram ao ponto de Eragon ansiar por tapar seus
ouvidos e bloquear o som. Isso o fez estremecer e se inquietar, além de mexer
com os seus nervos. Ele, no entanto, se forçou a escutar. Era o preço de
resistir ao Império. Seria errado ignorar. Por isso ele manteve os punhos e os
dentes dolorosamente cerrados, enquanto a Campina Ardente ecoava as vozes
desencarnadas dos homens que iam morrendo.
Era necessário! Cada um luta com as armas que tem...
ResponderExcluirConcordo
ExcluirEragon tem um grande potencial para se tornar maligno, pode existir um futuro em que ele faça isso..
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