— Mestre — disse o
líder dos Dominados pelo Caos (pelo menos foi o que Call presumiu que ele
fosse). — Quer que matemos o Makar para você?
— Não — respondeu
Call rapidamente, horrorizado. — Não, só... fiquem onde estão. Parados —
acrescentou, como se estivesse falando com Devastação.
Nenhum dos
Dominados se mexeu. Aaron começou a caminhar em direção a Call, as botas
esmagando os espinhos das pinhas. Ele navegou com destreza entre o exército
ajoelhado.
— O que está
acontecendo? — perguntou Jasper.
Call sentiu um
aperto no ombro. Ao se virar, viu que era Tamara. Ela olhava fixamente para os
Dominados pelo Caos, porém logo em seguida desviou o olhar e o fixou em Call.
— Diga o que
significa isso — exigiu ela. — Diga o que você representa para eles.
Estava na voz dela.
Mesmo que não soubesse a resposta, já desconfiava. Call achou que Tamara fosse
ficar furiosa ao descobrir. Mas não foi o caso. Ela parecia incrivelmente
triste, o que era pior ainda.
— Call? — Aaron
estava a poucos centímetros dele, mas parecia uma longa distância. Ficou ali
parado, incerto, tentando não olhar para os Dominados, que permaneciam de
joelhos, à espera de um comando. Call olhou para eles, alguns corpos jovens e
outros velhos, mas nenhum com menos de 14 anos. Nenhum mais novo que ele.
Tamara balançou a
cabeça.
— Você ficou com
raiva de mim por mentir para você. Não minta para nós agora.
Fez-se uma pausa
terrivelmente torturante. Jasper olhava para Call (e continuava agarrando o
graveto, como se aquilo fosse protegê-lo). Mas Aaron encarava o amigo,
esperançoso, como se julgasse que Call pudesse esclarecer tudo, e aquilo era o
pior de tudo.
— Eu sou o...
Inimigo da Morte — revelou Call. Os Dominados pelo Caos emitiram um ruído, uma
espécie de suspiro longo, todos de uma vez. Nenhum deles se mexeu, mas aquilo
era uma péssima ilustração do que Call dizia. — Sou Constantine Madden, ou o
que restou dele.
— Isso não é
possível — falou Aaron lentamente, como se achasse que Call tinha batido a
cabeça com muita força. — O Inimigo da Morte está vivo. Está em guerra conosco!
— Não, Mestre
Joseph está — corrigiu Call. Ele continuou, passando à frente a explicação que
tinha recebido, a que ele próprio não queria entender. — O Inimigo da Morte
estava morrendo no Massacre Gelado. Ele fez com que sua própria alma entrasse
no corpo de um bebê. — Call engoliu em seco. — O bebê era eu. Minha alma é a
alma de Constantine Madden. Eu sou Constantine.
— Você quer dizer
que você matou o verdadeiro Callum
Hunt e pegou o lugar dele — acusou Jasper. Uma chama se acendeu em sua mão,
espalhando-se pelo graveto que segurava, até a ponta pegar fogo. Provavelmente
foi a melhor demonstração de magia que Jasper já conseguira, mas ele mal
pareceu notar. — Rápido, temos de destruí-lo antes que nos mate, antes que mate
o Makar. Aaron você precisa correr!
Aaron permaneceu
onde estava, olhando para Call com uma mistura de tristeza e incredulidade.
— Mas você não pode
ser — falou Aaron afinal. — Você é meu melhor amigo.
O líder dos
Dominados pelo Caos se levantou. Os outros Dominados o acompanharam, como um
exército de marionetes. Começaram a marchar em direção a Jasper, passando por
Call, como se ele não estivesse ali.
— Esperem — gritou
Call. — Não! Parem, todos.
Nada aconteceu. Os
guerreiros de olhares mortos continuaram em marcha. Não se movimentavam
depressa, mas avançavam firmemente em direção a Jasper, que não recuava. A
chama na mão do menino ainda ardia, e ele estava com uma expressão terrível no
rosto, como se estivesse pronto para morrer lutando. Nada parecido com o Jasper
que passou a viagem reclamando, o Jasper que resmungava por causa de pequenos
ferimentos. Esse Jasper parecia destemido.
Mas Call sabia que
aquela atitude não faria bem algum a Jasper. Por mais destemido que fosse, não
teria o que fazer contra centenas de Dominados pelo Caos. Call sentira pavor
antes, quando o obedeceram; mas naquele momento estava assustado porque eles
não o obedeciam.
— Parem! — repetiu
ele, com voz ressonante. — Vocês, nascidos do caos e do vazio, parem! Eu
ordeno!
Eles pararam.
Jasper arfava. Tamara se encontrava ao lado dele, a luz brilhando na palma da
mão. Aaron também se colocara perto deles. Seu coração batia acelerado. Seus
amigos, enfileirados contra ele.
— Eu não sabia. —
Call podia ouvir a súplica na própria voz. — Quando ingressei no Magisterium,
eu não sabia.
Todos o encararam.
Finalmente, Tamara falou:
— Acredito em você,
Call.
Call engoliu em
seco e prosseguiu:
— Na maior parte do
tempo, nem parece possível. Eu não vou machucar ninguém, certo? Mas, Jasper, se
você me atacar, os Dominados pelo Caos vão matá-lo. Não sei se consigo
contê-los.
— Então, quando
você descobriu? — perguntou Aaron. — Que você era... o que você é?
— No boliche, ano
passado. Mestre Joseph me contou, mas eu não quis acreditar. Mas acho que meu
pai sempre desconfiou.
— E foi por isso
que ele fez tanto escândalo quando você não fracassou em entrar no Magisterium
— relembrou Jasper. — Porque ele sabia que você era mau. Ele sabia que você era
um monstro.
Call se encolheu.
— Por isso ele
queria que Mestre Rufus interditasse seus poderes — acrescentou Aaron.
Call não sabia o
quanto queria que Aaron contrariasse Jasper até ele não fazê-lo.
— Ouçam, essa é a
parte que eu não podia explicar, porque não teria feito sentido antes. Meu pai
não quer machucar Aaron com o Alkahest. Ele quer usá-lo para me consertar.
— Consertar? —
repetiu Jasper. — Ele deveria matá-lo.
— Talvez — disse
Call. — Mas ele definitivamente não merece morrer por causa disso.
— Tudo bem, então o
que você quer, Call? — indagou Aaron.
— As mesmas coisas
que sempre quis! — gritou Call. — Quero recuperar o Alkahest para devolver à
escola. Quero salvar meu pai. Não quero mais guardar segredos terríveis!
— Mas você não quer
derrotar o Inimigo da Morte — retrucou Jasper.
— Eu sou o Inimigo
da Morte! — berrou Call mais uma vez. — Nós já derrotamos o Inimigo! Eu estou do lado de vocês.
— Sério? — Jasper
balançou a cabeça. — Então, se eu dissesse que quero ir embora, você mandaria
os Dominados pelo Caos me impedirem?
Call hesitou por um
longo momento, com Tamara e Aaron olhando para ele.
Finalmente, Call
falou:
— Sim, eu
impediria.
— Foi o que pensei.
— Estamos muito
perto do fim! — Call tentou explicar. — Muito perto de meu pai. Ele ainda está
com o Alkahest. Ainda vai entregá-lo a Mestre Joseph. E o Mestre Joseph não vai
utilizá-lo para me matar; ele me quer vivo. Vai matar meu pai, vai matar Aaron,
e quem pode saber o que vai fazer depois. Temos de ir até o fim.
Ele os encarou,
querendo que entendessem. Após um longo, longo momento, Tamara assentiu
discretamente.
— Então, o que
faremos agora?
Call se voltou para
os Dominados pelo Caos.
— Nos levem até Mestre
Joseph — ordenou Call. — Nos levem até lá, não nos machuquem e não contem que
estamos indo.
Os Dominados
começaram a caminhar, ladeando Call. Aaron, Tamara e Jasper estavam sendo
conduzidos, agrupados, cercados. Seguiram por uma trilha estreita, ladeada por
corpos que pareciam cadáveres; Call se lembrou de pinturas bíblicas do Mar
Vermelho se abrindo. Não havia para onde ir que não o caminho direcionado pelos
Caóticos, e não havia ritmo de caminhada que não o deles.
Marcharam pela
floresta escura em silêncio, com o estalo das pinhas sob os pés. Devastação foi
andando contente, sentindo-se em casa com outros de sua espécie. A cada passo,
Call sentia uma terrível solidão o dominar. Depois disso, não teria como voltar
ao Magisterium. Não teria mais amigos; não teria mais aulas com Mestre Rufus;
não teria mais refeições de líquen no Refeitório, ou brincadeiras com Célia na
Galeria.
Ao menos Devastação
iria com ele, apesar de Call não saber para onde.
Caminharam pelo que
pareceu um longo tempo, longo o bastante para que a perna de Call doesse
intensamente. Ele conseguia se sentir desacelerando, sentir a maioria dos
Dominados pelo Caos diminuindo o ritmo para que ele não ficasse para trás.
Então, basicamente,
ele estava ditando o ritmo.
Aaron apareceu ao
lado dele.
— Você iria ser meu
contrapeso — disse ele, e só quando usou o pretérito que Call percebeu, com um
aperto no coração, o quanto queria isso.
— Eu não sabia
quando me ofereci.
— Não quero lutar
contra você — prosseguiu Aaron. Jasper e Tamara estavam na frente, Tamara
conversava, exasperada, com Jasper. — Eu não quero, mas é o que vai acontecer,
não é? É nosso destino: matar um ao outro.
— Você não acredita
de verdade que eu quero te matar, acredita? — disse Call. — Se eu quisesse, já
poderia ter feito isso. Poderia ter te matado enquanto você dormia. Poderia ter
matado você um milhão de vezes. Poderia ter arrancado sua cabeça!
— Isso é bem
convincente — murmurou Aaron. — Tamara!
Ela recuou para
andar com eles. Jasper continuou na frente, com alguns Dominados pelo Caos ao
seu lado.
— Por que você
falou aquilo antes? — perguntou Aaron. — Que você acreditava em Call?
— Porque ele tentou
escapar do Magisterium — explicou Tamara. — Ele realmente não queria entrar. Se
ele soubesse que era Constantine Madden, teria tentado se dar bem com os
Mestres para espioná-los. Em vez disso, irritou todo mundo. Para completar,
Constantine Madden era famoso por seu charme, e obviamente este não é o caso de
Call.
— Obrigado. — Call
fez uma careta de dor por causa da perna. Não sabia por quanto tempo aguentaria
continuar sem descansar. — Isso alegrou meu coração.
— E, ainda — continuou
Tamara —, existem coisas que não se pode fingir.
Antes que pudesse
perguntar o que ela queria dizer com aquilo, Call tropeçou em uma raiz e caiu
de joelhos. Os Dominados pelo Caos pararam subitamente, os que estavam na
frente de Jasper se viraram e o detiveram com as mãos em seu peito.
Call resmungou e
rolou, tentando se levantar.
Um dos Dominados o
ergueu, segurando-o com a mesma facilidade com que Call teria segurado um gato.
Era embaraçoso e, ainda mais vergonhoso, um alívio.
— Nós o
carregaremos pelo restante do caminho, Mestre — disse o Dominado.
— Essa
provavelmente não é a melhor das ideias — retrucou Call. — Os outros...
Um dos Dominados
agarrou Tamara, colocando-a sobre suas costas. Ela se debateu.
— Call! — gritou
ela, em pânico.
Dois deles levantaram
Aaron, enquanto um quinto ergueu Jasper, que chutava o ar.
— Vamos carregar
todos — informou o Dominado que segurava Call, mas isso não pareceu o acalmar
em nada. — Iremos mais rápido assim.
Call ficou tão
surpreso que não deu nenhuma ordem, nem mesmo quando os Dominados aceleraram o
ritmo. Eles começaram a apertar o passo e, em seguida, a correr, com Devastação
em seu encalço. Correram sem parar, cobrindo uma faixa tão extensa de
território que Call não conseguia se imaginar cruzando a pé.
Àquela distância,
Call imaginava que os Caóticos cheirassem à podridão. Afinal, eles deveriam ser
mortos, reanimados por magia do vazio. Mas o cheiro era mais de cogumelo, não
era desagradável, apenas estranho.
Aaron parecia
desconfortável. Tamara aparentemente estava ao mesmo tempo animada e apavorada.
Mas a expressão de Jasper era impossível de ser interpretada por Call, um vazio
que poderia representar medo ou desespero ou nada.
— Call, o que eles
estão fazendo? — gritou Tamara para ele.
Call deu de ombros,
incomodado.
— Nos carregando?
Acho que estão tentando ajudar.
— Não gosto disso —
declarou Aaron, aparentando estar em um passeio particularmente vertiginoso.
Os Dominados iam
cada vez mais rápido, a magia os impulsionava para a frente, pela floresta,
sobre folhas caídas, pelos riachos e por cima das pedras, por arbustos,
samambaias e espinheiros. Em seguida, tão depressa quanto começaram, os
Dominados pararam.
Call logo se viu de
pé, sendo derrubado na areia de uma praia, a fração de lua acima deles projetava
uma trilha de prata sobre a água.
Os Dominados
começaram a caminhar mais próximos uns dos outros, a trilha se estreitava na
medida em que atravessavam a praia. Call pôde escutar o oceano, a batida das
ondas.
Três barcos a remos
estavam amarrados em uma doca na praia, balançando gentilmente com a maré. Se
Call apertasse os olhos, poderia enxergar um pedaço de terra ao longe, visível
apenas graças ao reflexo entrecortado do luar.
— Ilha do Mal? —
perguntou Jasper.
Call riu, surpreso
por Jasper ter dito alguma coisa. Ele provavelmente estava falando sério,
concluiu Call, pois parecia improvável que ele desenvolvesse um senso de humor
justo naquele momento.
— Dominados — disse
Call —, como atravessamos?
Com essas palavras,
três deles entraram no mar. Primeiro, a água batia nas coxas, depois nas
cinturas, nos pescoços, depois cobriu as cabeças completamente.
— Esperem! — berrou
Call, mas eles já tinham seguido. Será que tinha acabado de matá-los? Será que
sequer morriam?
Um instante mais
tarde, mãos pálidas se ergueram do mar, soltando as cordas que prendiam os
barcos. Depois, puxados por mãos invisíveis, os barcos flutuaram para a costa.
Os Dominados emergiram das profundezas, as faces impassíveis como sempre.
— Hum — murmurou
Aaron.
— Acho que a gente
deve embarcar. — Tamara foi até um dos barcos. — Aaron, entre no barco com
Call.
— Qual é o sentido
disso? — Jasper quis saber.
Tamara olhou para
os Dominados.
— Para o Makar não
se afogar antes que Call possa contê-los.
Jasper abriu a boca
para protestar, e a fechou de novo.
Call subiu
rapidamente no barco. Aaron o seguiu.
Jasper se ajeitou
no segundo barco. Tamara pegou Devastação e foi para o terceiro.
Os Dominados pelo
Caos os arrastaram pelo mar.
Apesar de já ter
passeado muito de carro com Alastair, os únicos barcos em que Call já tinha
andado foram balsas que transportavam carros antigos ou algum outro objeto de
algum local remoto onde Alastair o adquirira. Isso e os barquinhos que
navegavam os túneis do Magisterium.
Call jamais
estivera tão perto da água, no mar aberto. As ondas eram negras em todas as
direções, os esguichos gelados em suas bochechas, salgados o suficiente para
fazerem sua boca arder.
Estava assustado.
Os Dominados pelo Caos eram assustadores, e o fato de que o obedeciam não fazia
deles menos monstruosos. Seus amigos queriam ficar longe dele — talvez até
machucá-lo. E em breve encontraria seu pai e Mestre Joseph, ambos imprevisíveis
e perigosos.
Aaron estava
sentado encolhido na proa do barco. Call queria falar alguma coisa para ele,
mas supôs que nada do que dissesse seria bem recebido.
Os Dominados pelo
Caos andavam ao lado deles, embaixo da água, empurrando os barcos. Call
conseguia ver as cabeças sob as ondas. Finalmente, o pedaço de terra à frente
deles se transformou em uma paisagem. A ilha era pequena, não tinha mais que
poucos quilômetros, e parecia coberta por árvores. Os Dominados pelo Caos
puxaram uma pequena plataforma para a praia com suas mãos molhadas. Call saltou
do barco, com Aaron logo atrás, e os dois se juntaram à Tamara e Jasper na
costa. Tamara segurava nos pelos de Devastação para conter o lobo. Devastação
latiu e correu para Call.
Todos ficaram
assistindo enquanto ondas e mais ondas de Dominados vinham como piratas
afogados em uma história de fantasmas.
— Mestre — disse o líder,
quando todos se reuniram. Ele tinha se posicionado ao lado de Call, como um
guarda-costas. — Sua tumba.
Primeiro Call achou
que havia ouvido errado. Sua casa,
foi o que a criatura pareceu dizer por um instante esperançoso. Mas não foi
nada disso.
Call tropeçou,
quase caindo na areia.
— Tumba? — Aaron o
olhou de um jeito estranho.
— Sigam — ordenou o
líder dos Dominados, partindo pelo bosque. O resto do exército se agrupou ao
redor, os corpos pingando, e levaram Call e os outros por uma trilha. Não havia
muita luz, mas a passagem era larga, com pedras brancas que delimitavam as
bordas do caminho.
Call ficou
imaginando o que aconteceria se ordenasse que os Dominados andassem em fila
indiana. Será que obedeceriam? Seriam obrigados a obedecê-lo?
Então, com esse
pensamento em mente, ele começou a imaginar outras coisas estranhas e
engraçadas para ordenar aos Dominados; dançar em fila ou pular em um pé só.
Imaginou todo o exército do Inimigo da Morte saltando em um pé só para a
batalha.
Um risinho louco
escapou de sua boca. Tamara olhou para ele, preocupada.
Nada como seu Suserano do Mal rindo, pensou ele
e, em seguida, teve de conter outro impulso completamente inapropriado de uma
gargalhada nervosa.
Foi quando a trilha
fez uma curva súbita, e ele viu uma construção enorme de pedra cinza. Parecia
velha e gasta pelos anos e pela maresia. Duas portas em forma de lua crescente
formavam a entrada; no alto destas havia uma aldrava na forma de uma cabeça
humana. O arco era marcado por palavras em latim:
ULTIMA FORSAN. ULTIMA FORSAN. ULTIMA FORSAN.
— O que significa?
— pensou alto Call.
— Significa “a hora
está mais próxima do que imagina” — respondeu o líder —, Mestre.
— Acho que
significa alguma coisa sobre a última hora — falou Tamara. — Meu latim não é
muito bom.
Call olhou para
ela, confuso.
— Significa “a hora
está mais próxima do que imagina”.
Jasper pareceu
surpreso.
— É mesmo.
Significa isso.
— Call, por que
perguntou se já sabia? — disse Aaron.
— Porque eu não
sabia até ele me contar! — respondeu Call, exasperado. Apontou para o líder dos
Dominados pelo Caos. — Vocês não ouviram?
Fez-se um novo
silêncio terrível.
— Call. — Tamara
começou a falar lentamente. — Você está dizendo que essas coisas estão falando
com você? Sabíamos que você estava falando com eles, mas não os ouvimos
responder.
— Basicamente ele.
— Call apontou para o líder, que parecia impassível. — Mas sim. Consigo
ouvi-los e... vocês não o ouviram na clareira? Quando ele me chamou de
“mestre”?
Tamara balançou a
cabeça.
— Eles não estão
falando palavras — sussurrou ela. — Só resmungando e rugindo.
— E emitindo ruídos
estranhos como gritos abafados — acrescentou Aaron.
— A mim parece que
falam nossa língua com perfeição — retrucou Call.
— É porque você é
como eles — disparou Jasper. — As almas deles são todas vazias, e eles não têm
nada por dentro, e nem você. Você não é nada além do Inimigo.
— O Inimigo fez
essas criaturas. — Aaron enfiou as mãos nos bolsos. — Ele teria de entendê-los
porque eles o serviam. E você entende porque...
— Porque eu sou ele
— completou Call. Não era nada que não soubessem, apenas mais uma prova
assustadora. — Sou tão horrível que estou chocando a mim mesmo — murmurou.
— Mestre — disse o
líder. — Sua tumba o espera.
Ele claramente
esperava que Call entrasse naquele enorme mausoléu. E Call teria de fazê-lo.
Aquele era o destino deles. Era ali que Mestre Joseph encontraria Alastair.
Call ajeitou os
ombros e caminhou para a porta. Devastação saltitava ao lado dele, claramente
sentindo-se em casa. Atrás do lobo vieram Aaron, Tamara e Jasper.
— Ai, meu Deus. —
Ele ouviu a voz horrorizada de Tamara. Demorou um segundo para perceber a que
ela estava reagindo. O que ele julgara ser uma aldrava em forma de cabeça era,
na verdade, uma cabeça humana decepada,
pregada na porta, como se fosse a cabeça de um cervo.
Pertencia a uma
menina, uma menina que não parecia muito mais velha que eles. Uma menina que
teria morrido recentemente. Mal pareceria morta, não fosse pelo fato de a pele
ao redor da base do pescoço ter sido cortada de forma irregular. Os cabelos cor
de mogno, soprados pelo vento, batiam ao redor de sua face estranhamente
familiar.
Lágrimas arderam
nos olhos de Tamara, descendo pelas bochechas. Ela as limpou com as costas das
mãos, mas fora isso mal parecia notar que estavam caindo.
— Não pode ser. —
Ela se aproximou da porta.
Call teve a
sensação de já ter visto aquele rosto antes, mas onde? Talvez na festa na casa
dos Rajavi? Talvez fosse uma das amigas de Tamara? Mas por que a cabeça dela
estaria exibida ali, como um troféu macabro?
— Verity Torres —
informou Jasper em voz baixa, as palavras saindo quase como um sussurro. — Não
encontraram o corpo em lugar algum.
Call ficou abalado
pelo quão perdido Aaron parecia, tremendo em sua camisa fina; olhando para a
última Makar que defendeu o Magisterium. Se ele tivesse sido da geração
anterior, seria ele ali. Sua cabeça estaria pendurada sobre aquela porta, como
um aviso terrível.
— Não! — Aaron
piscou violentamente, como se não conseguisse se livrar da visão diante de si.
— Não, não pode ser ela. Não pode.
Call teve a
sensação de que ia vomitar.
Os olhos da cabeça
se abriram para exibir bolas de gude leitosas, sem pupilas ou íris.
Tamara soltou um
soluço. Jasper colocou a mão na boca.
Os lábios mortos se
moveram, e as palavras saíram.
— Como meu nome
significa verdade, eu garanto que sou os restos mortais de Verity Torres. Aqui
dormem os mortos, e os mortos os guardam. Se desejam entrar, três charadas
apresentarei. Respondam corretamente e poderão seguir.
Call olhou
desamparado para os outros. Estivera contando com o fato de ser Constantine
Madden para entrar ali, mas a cabeça de Verity Torres claramente não o
reconheceu.
— Charadas —
repetiu Tamara com a voz trêmula. — Tudo bem. Podemos matar charadas.
— Como você chama
aquilo que nunca pode estar abaixo dos outros membros? — perguntou a menina com
uma voz estranha, que não se encaixava com o movimento da boca.
— Ah, não, isso não
tem graça — retrucou Call. — Não é uma boa piada.
— Do que você está
falando? — perguntou Aaron. — Qual é a resposta? O céu?
Tamara pareceu
ainda mais perturbada.
— A cabeça — disse ela. — Cabeça.
Entenderam?
Verity Torres
soltou uma risadinha rouca. Sua expressão, entretanto, não era risonha. Seus
olhos permaneceram brancos e vazios.
— Quem fez isso com
você? — perguntou Aaron subitamente. — Quem?
— Só pode ter sido
Mestre Joseph — respondeu Tamara. — Constantine já havia deixado o campo de
batalha. Ele estava nas cavernas durante o Massacre Gelado...
— Ocupado roubando
corpos de outras pessoas para habitar — interrompeu Jasper.
Apesar de as
palavras terem doído, Call foi atingido pelo alívio de saber que Constantine
Madden não podia ter sido o responsável por aquele horror, pois estava ocupado
renascendo como Callum. Claro, o Inimigo tinha feito outras coisas terríveis.
Mas não aquilo.
— Esta não foi uma
charada verdadeira. — A cabeça ignorou a pergunta de Aaron. — Foi só um treino.
— Temos de sair
daqui — balbuciou Jasper, apavorado. — Temos de ir.
— Para onde? Há
centenas de Dominados pelo Caos atrás de nós. — Aaron ajeitou os ombros. — Pode
fazer a charada.
— Então vamos em
frente — continuou Verity. — O que começa e não tem fim, mas é o fim de tudo
que começa?
— A morte —
respondeu Call. Aquela foi fácil. Ele ficou satisfeito. Bom em charadas não se encaixava em lugar algum da lista de
Suserano do Mal.
Ouviu-se um clique,
um ruído de moagem, uma tranca que se soltava do outro lado da porta.
— Agora a segunda
charada. Eu o deixo exausto, no entanto você sofre quando voo. Você vai me
matar, mas eu nunca vou morrer.
O próprio Inimigo, Call pensou. Mas essa não era
uma boa resposta de charada, era?
Eles trocaram
olhares. Foi Tamara quem respondeu.
— O tempo.
Mais um som de
arranhando a madeira.
— E agora a última
— informou Verity. — Aceite e vai perder ou ganhar mais que todos os outros. O
que é?
Silêncio. A mente
de Call estava acelerada. Perder ou
ganhar, perder ou ganhar. Charadas eram sempre sobre algo maior do que
pareciam ser. Amor, morte, riqueza, fama, vida. Não se ouvia qualquer barulho a
não ser os grunhidos distantes dos Dominados e a própria respiração de Call.
Até uma voz aguda e trêmula cortar o silêncio.
— O risco — disse
Jasper.
A cabeça de Verity
Torres soltou um suspiro de decepção, aqueles terríveis olhos se fecharam, e um
último clique soou. A porta se abriu. Call não conseguiu enxergar nada além de
sombras. De repente, estava tremendo, com mais frio do que jamais havia
sentido.
Perigo.
Ele olhou para
Aaron e Tamara, respirou fundo e atravessou a porta.
A tumba era
parcamente iluminada por pedras que lembravam as pedras brilhantes no interior
do Magisterium, posicionadas ao longo da parede. Ele conseguiu identificar um
corredor que levava ao que pareciam cinco câmaras.
Ao se virar, ele
vislumbrou o imenso grupo de figuras horríveis que o encaravam com olhos
brilhantes. O líder fixou o olhar em Call.
O menino tentou
manter a voz firme.
— Fiquem aqui,
filhos do caos. Eu volto.
Todos eles
inclinaram as cabeças ao mesmo tempo. De forma perturbadora, Call viu que
Devastação estava entre eles. Seu lobo também havia abaixado a cabeça. Uma onda
de tristeza atravessou o corpo de Call. E se Devastação só tivesse ficado com
ele porque fora obrigado? Porque foi para isso que havia sido criado? Aquilo
era mais que Call julgava ser capaz de aguentar.
— Call? — chamou
Tamara. Ela estava na metade do corredor, com Aaron e Jasper ao lado. — Acho
melhor você ver isso aqui.
Ele olhou novamente
para o exército. Será que estava sendo ridículo, não levando pelo menos um
deles consigo para protegê-lo? Ele apontou para o líder.
— Menos você. Você
vem comigo.
Tentando tirar
Devastação da cabeça, ele mancou para dentro do mausoléu. O líder dos Dominados
pelo Caos o seguiu, e Call ficou observando enquanto ele fechava as portas com
cuidado atrás de si, bloqueando o mundo exterior.
O líder se virou e
olhou com expectativa para Call, aguardando instruções.
— Você vai me
seguir, me proteger se alguém tentar me machucar.
A criatura
assentiu.
— Você tem nome?
O Dominado fez que
não com a cabeça.
— Muito bem. Vou
chamá-lo de Stanley. É estranho você não ter um nome.
Stanley não esboçou
qualquer reação, de forma que Call se virou e foi andando pelo corredor. Estava
na metade do caminho quando ouviu Tamara chamar seu nome outra vez.
— Call! Você
precisa ver isso.
Call se apressou
para alcançá-la. Encontrou-a com Aaron e Jasper, agrupados diante de uma
alcova. Enquanto ele e Stanley se aproximavam, os três abriram caminho, dando
acesso a Call.
Dentro da alcova
havia um pedestal de mármore... e, sobre o pedestal, o corpo de um menino morto
com cabelos castanho-escuros. Estava com os olhos fechados, os braços alinhados
nas laterais. O corpo perfeitamente preservado, mas claramente morto. A pele
branca como cera, e o peito imóvel. Apesar de alguém tê-lo vestido com roupas
brancas de funeral, ainda usava a pulseira que o marcava como aluno do Ano de
Cobre.
Talhado na parede
atrás dele, seu nome: Jericho Madden.
Empilhados em volta do corpo, diversos objetos. Um cobertor velho ao lado de
uma porção de cadernos e livros empoeirados, uma pequena bola brilhante que
parecia quase desprovida de energia, uma faca dourada e um anel brilhante com
um símbolo que Call não reconhecia.
— Claro — sussurrou
Tamara. — O Inimigo da Morte não teria construído um mausoléu para si mesmo.
Ele não achava que um dia fosse morrer. Construiu esse lugar para o irmão. E
reuniu suas posses no túmulo.
Aaron encarou o
corpo, fascinado.
Call não conseguiu
falar. Sentiu alguma coisa se contorcer dentro de si, uma dor ansiosa de algo
que ele esperava sentir quando viu a impressão da mão de sua mãe do Hall dos
Graduados. Uma conexão de amor, família e passado. Não conseguia parar de olhar
para o menino no pedestal, ou de se lembrar das histórias que tinha escutado:
aquele era o irmão que Constantine queria ressuscitar, o irmão cuja morte o fez
realizar experimentos com o vazio e criar os Dominados pelo Caos, o irmão cuja
morte o fez transformar a própria morte em seu inimigo.
Call ficou
imaginando se algum dia amaria alguém com aquela intensidade, a ponto de
abdicar de tudo pela pessoa, de querer incendiar o mundo para recuperá-la.
— Eles eram tão
jovens — comentou Aaron. — Jericho devia ter nossa idade. E Verity era só um
pouco mais velha. Constantine nunca passou dos 20.
A Guerra dos Magos
consumiu a todos como uma fogueira. Era horrível pensar naquilo. Porém, ao
mesmo tempo, Call jamais ouvira alguém pronunciar o nome de Constantine com
tanta compaixão antes.
Claro que foi
Aaron. Ele tinha compaixão por todos.
— Aqui. — Jasper
tinha se afastado um pouco no corredor e olhava para outra alcova. As estranhas
pedras brilhantes nas paredes projetavam uma luz sombria sobre seu rosto. —
Alguém que conhecemos.
Call sabia quem
encontrariam antes mesmo de chegar ali. Um menino magro, com lisos cabelos
castanhos, sardento, os olhos azuis fechados para sempre.
Drew.
Lembrou-se do corpo
de Drew, da última vez em que o viu e da forma como Mestre Joseph lançou um
feitiço para fechar os ferimentos, apesar de Drew já estar morto. O corpo
parecia curado, mesmo que o espírito não estivesse mais ali.
Também tinha bens
funerários; roupas dobradas e brinquedos preferidos, a estatueta de cavalo e
uma foto em que aparecia com um dos braços em volta de um sorridente Mestre
Joseph, o outro em uma pessoa diferente — alguém que fora cortado da foto.
Call estava prestes
a pegar a fotografia e examiná-la mais de perto quando ouviu vozes distantes e
abafadas vindo de debaixo deles.
— Ouviram isso? —
sussurrou ele, afastando-se do corpo de Drew pelo corredor.
Escadas estavam
ocultadas pelas sombras. Pareciam esculpidas em pedra sólida. Call levou um
instante para perceber que deviam ter sido criadas por magia.
A hora está mais próxima do que você imagina.
Call desceu pelos
degraus. Os outros seguiram com cautela. Ele alcançou a base da escada e olhou
em volta do recinto sombrio e cavernoso. A escuridão ali embaixo era mais
profunda, as pedras brilhantes nas paredes, mais espaçadas.
E então ele viu. O
último corpo — o próprio Constantine. Estava deitado sobre um pedestal de
mármore, os braços cruzados sobre o peito. Tinha cabelos castanho-escuros e
feições angulosas. Podia ter sido bonito, não fossem as marcas lívidas de
queimaduras que cobriam o lado direito do rosto e desapareciam para dentro do
colarinho. Não eram tão ruins quanto Call havia imaginado, no entanto, após
ouvir tantas histórias sobre o rosto queimado do Inimigo e a máscara que ele
usava. Constantine parecia essencialmente normal. Terrivelmente normal. Poderia
ser qualquer um que passava na rua. Qualquer pessoa.
Call se aproximou.
Stanley o seguiu.
— O que está vendo?
— sussurrou Aaron mais de longe, nas escadas.
— Shhh — chiou Call
de volta, indo até o corpo de Constantine. — Fique aí.
Ainda conseguia
ouvir as vozes vindas das paredes. Seriam fantasmas sussurrantes? Sua
imaginação? Ele não tinha mais certeza de nada. Não conseguia parar de olhar
para o corpo. Sou eu, pensou. Esse foi meu primeiro rosto, antes de eu me
tomar Callum Hunt.
Ele foi tomado por
uma tontura. Cambaleou novamente para trás, contra a parede, para um canto
oculto pelas sombras, justamente quando uma porta invisível se abriu e Mestre
Joseph entrou, seguido pelo pai de Call.
O coração de Call
disparou violentamente no peito. Era tarde demais para conter Alastair.
cavalo de 8 patas, Stanley, hummm, Magnus Chase, seria apenas coincidencia?
ResponderExcluirEu acho que a alma dos dois se fundiu e a do call nunca morreu. Oq quando ele viu a digital da mãe sentiu aquele aperto no peito. O mesmo que sentiu qndo viu o outro gêmeo.
ResponderExcluirEle não sentiu um aperto tão forte quando viu a marca da "mãe".
ExcluirNão tinha pensado nessa. Pode ser que seja isso...
ExcluirEzequiel
O Call não sentiu esse aperto quando viu a marca da mãe igual como sentiu ao ver o irmão, eu acho isso bem interessante
ExcluirÉ mais uma prova incontestável de que ele é Constantine
eu to achando que na verdade o constantine não foi realmente mau e o grupo dele também não, acredito que na verdade o verdadeiro inimigo é o próprio magisterium ou alguém de lá dentro
ResponderExcluirNão sei o que pensar, mas mesmo o Call sendo o Constantine (supostamente, podemos esperar qualquer reviravolta desse livro) todo mundo sabe que ele não é mau.
ResponderExcluirAcho que o verdadeiro vilão da porra td é o mestre Joseph
ResponderExcluirA cabeça da veryty torres,sério isso!!!!!?????!!!!???:0
ResponderExcluirAcho que os caras não estão tentando fazer nada que o Callum ta pensando, é típico de protagonista se enganar desse jeito, deve ser algo muuuito pior.
ResponderExcluirEsse livro ta bom demais mais pra quem leuvarios livro nesse blog que nem eu essa historia tem muitas coisas que lembra outras séries aterio a essa mais ta demais .eu ainda acredito que no final call vai resolver tudo no lado do bem mais tudo pode acontecer já le série aqui mesmo que deu errado pro protagonista
ResponderExcluirSó pra relembra adoro seu blog Karina só me chatei que faz mais de um ano que a série 50 tons de cinza não sai blog 2 todo mês vou lá ver e não e lançado
ResponderExcluir